Moby Dick: A bordo do Pequod de Aderbal, um encontro com Ahab e a baleia branca

Estou digerindo óleo de baleia. Aquela coisa que servia pra iluminar postes nas cidades de outrora. Num banquete ontem à noite, serviram óleo de cachalote. E o óleo mais precioso de cachalote – uma cera líquida, na verdade – é uma coisa que servia para lubrificar relógios, fazer sabão, abrilhantar couro… Pra comer, é complicado. Voluntariamente, eu não me arriscaria. Imaginaria que seria pesadíssimo. Uma quantidade enorme de energia concentrada. Iguarias desse tipo às vezes isso caem muito mal em estômagos despreparados…

Pois comi. Meio inadvertidamente. Empanturrei-me da maior, mais temida, mais tenaz, mais branca, perfurada e enigmática das baleias. E cá estou ainda estou digerindo a abundante “Moby Dick” de Aderbal Freire Filho. Mas, à medida a sensação de ter comido demais passa, a peça ganha saborosos sentidos. E fica um gosto muito bom no fim. 

O Pequod do capitão Ahab zarpa da arena do Teatro Poeira, no Rio, onde a peça estreou na noite dessa quinta-feira. A bordo, Chico Diaz, Orã Figueiredo, Isio Ghelman e André Mattos. A viagem dura duas horas de força, por vezes bruta como necessária à vida no mar. É uma jornada poética e loquaz (raramente prolixa), ligeira nas falas, mas pesada (no bom sentido) de tantas significações que carrega. É cheia de duplos. Divertidos duplos que começam quando o jogo teatral transforma a platéia em tripulação, logo de início.
 
Ahab convoca à caçada do leviatã que lhe levou a perna, a paz e a sanidade. Chico Diaz interpreta o capitão, com olhos de uma enormidade obcecada. Globos de um azul agigantado, onde cabe o mar inteiro que se tem a percorrer em busca do monstro. Seus imediatos apresentam-se, cada um com seu estilo de caçar, pensar e viver. 

O Pequod de Aderbal oscila sobre ondas cênicas revoltas. Mas evitem qualquer remédio para enjôo porque dá sono e é preciso estar alerta para pescar a riqueza de detalhes e jogos do espetáculo. O mais delicioso dos jogos é o que se estabelece entre os atores e seus personagens e, por conseguinte, com o público. Há um distanciamento divertido nas interpretações, mesmo que com a energia visceral que Chico Diaz imprime ao velho Ahab, o desespero contido e a fidelidade desesperada do Starbuck de Isio Ghelman, o niilismo brincalhão do Stubb de Orã Figueiredo, e o queixume caricato do Flask de André Mattos. Além do capitão e dos imediatos, os quatro atores-marujos interpretam uma galeria de tipos que habitam o romance, cujos capítulos são anunciados com gritos repetidos, como as ordens dadas num velho navio. Cada imediato comanda um bote baleeiro a seu modo, cada um com suas peculiaridades. Fiquei me perguntando qual teria sido o estilo de Aderbal para conduzir o elenco nessa caçada. Pode ter sido com a dignidade de Starbuck. Mas a alegria despojada dos atores diante de tamanha empreitada, com certeza, lembra mais a tripulação de Stubb – que ri enquanto rala e se diverte enquanto se arrisca.

 A aventura da busca pelo monstro, depurada e reduzida por incontáveis adaptações do romance de Melville em mais de cem anos, reconquista, na concepção de Aderbal, a profusão de formas narrativas que dá unicidade à obra original – não que o diretor-adaptador também não tenha precisado depurá-la e, às vezes, carnavalizá-la. Assim, a louca amargura de Ahab é interrompida sem mais nem menos por um impagável congresso de “cetologia”, extraído do lado mais inusitado do diário com que Melville reveste sua narrativa. Mais episódios da aventura adiante, novamente, a história é interrompida. Dessa vez, por Melville ele mesmo (André Mattos), tentando explicar a visão lateralizada dos cachalotes.

Profusão também no cenário e nos adereços. Fernando Mello da Costa e Rostand Albuquerque foram econômicos em volumes, mas não em itens. Uma imensa coleção de objetos que, apesar de remeter a uma coleção preciosa de antiguidades do mar, são usados e deixados de lado a todo tempo em cena, sem cerimônia. Os objetos do cenário são também alegorias, e os livros transformados em botes baleeiros um delicado achado. Frágeis diante da baleia branca, como papel que cai na água. 

Deixo para o fim o campo das significações porque a peça não pretende dar novos sentidos à obsessão de Ahab e o objeto dela, a baleia-título. A peça apenas brinca poeticamente e de várias maneiras com os duplos - em especial quando entrega a Chico Diaz a função de dar corpo às baleias na caçada, inclusive a Mobi Dick. Não precisa muita análise para entender: somos Ahab e somos a baleia. Somos as vítimas do monstro e o monstro que nos vitimiza. Somos o oceano profundo onde habitam leviatãs. Mas os leviatãs que estão em nós não são dissociáveis daquilo que somos. Por outro lado, o monstro será a baleia ou o homem que tenta caçá-la? O que nos devora é o que achamos ter de mais monstruoso em nós ou o olhar preconceituoso que empresta monstruosidade àquilo que talvez seja apenas banal e humano? 

Não há respostas. Melhor assim. 

Ao fim, a peça se torna uma ode ao trabalho do ator, esse aventureiro que vive de buscar, despertar e fustigar monstros dentro de seu próprio oceano, para trazê-los sob controle, cada noite, ao bom porto do teatro. No caso da montagem de Aderbal, convém à platéia ir lá, recebê-los, como uma saudosa família.