Antunes Filho não está, de modo algum, virando as costas para o passado. Mas assumiu sintonia com os dias que correm, a julgar pelo vapt-vupt de sua nova Falecida, atualmente em cartaz no Espaço CPT do Sesc Consolação, em São Paulo. - Hoje em dia o ritmo é outro. Não que eu concorde com o mundo que está aí fora. Mas não posso fazer nada. Tenho que negociar. Então, se você for ao teatro para fugir desse cotidiano acelerado não venha ver A falecida – avisa Antunes. Entretanto, não se trata simplesmente de se curvar diante da realidade imperante. Uma montagem como a de A falecida vapt-vupt decorre também de uma visão de Antunes acerca do teatro e, em especial, da relação com a plateia. - Antigamente, o público tirava luvas e cartolas para assistir aos espetáculos. Agora quero que os espectadores sejam desestruturados, que adquiram novas formas de percepção - ressalta. É a terceira vez que o encenador se debruça sobre uma das mais relevantes tragédias cariocas de Nelson Rodrigues (1912-1980). A primeira foi em 1965, na Escola de Arte Dramática (EAD). A segunda, no final dos anos 80, no elogiadíssimo Paraíso Zona Norte. Agora, Antunes Filho contextualiza a história de Zulmira, determinada a garantir para si mesma um enterro de luxo, na agitação de um bar tomado por movimento feérico. - Quis trazer a sensação de Rio 40 graus – diz, referindo-se ao emblemático exemplar do Cinema Novo assinado por Nelson Pereira dos Santos. – A supressão das personagens do bar modificaria tudo. O pano de fundo altera o conteúdo. - Decidi lidar com um texto que conhecia justamente para desenvolver uma pesquisa. Estou quebrando com o que é antiquado em teatro. Desejo acabar com a ilusão do teatrinho. Uso cada vez menos cenografia. Digo aos iluminadores que gostaria de deixar tudo claro. Aprecio o movimento dos atores. É o movimento da vida - afirma. O diretor se refere a um teatro pautado pelo essencial, perspectiva que norteia o projeto Pret-à-porter, no qual os próprios atores se responsabilizam pela concepção de cenas destituídas de elementos supérfluos, e as montagens das tragédias gregas, principalmente as duas versões de Medeia, de Eurípedes (485 a.C – 406 a.C). Há ainda outros elementos que determinaram na escolha de A falecida. - É uma peça simples e eu gosto muito dela. Todos os personagens me despertam piedade. Estão pré-julgados pelas situações – explica. Antunes aproxima Zulmira de Joaquim, o líder fanático de Vereda da salvação, de Jorge Andrade, texto que visitou duas vezes – em 1964, na montagem do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), e no excelente espetáculo de 1993. - Zulmira e Joaquim são pessoas sufocadas, que sentem necessidade de encontrar uma linha de fuga - compara. - Lamartine é um drama musical com um pouco de biografia – anuncia, sinteticamente, em relação ao espetáculo realizado a partir de um texto de sua autoria. – Já um autor como Lima Barreto proporciona uma análise do Brasil de todos os tempos. Não é de hoje que Antunes mapeia o país através de obras literárias, valendo lembrar de sua revolucionária releitura de Macunaíma, de Mario de Andrade (1893-1945), e do recente A pedra do reino, de Ariano Suassuna. Na literatura teatral, o diretor vem priorizando Nelson. Além de A falecida, encenou Bonitinha mas ordinária, Nelson Rodrigues – O eterno retorno (depois condensada para Nelson 2 Rodrigues), a citada Paraíso Zona Norte e Senhora dos afogados. E subverteu clássicos como Esperando Godot ao convidar atrizes – como Eva Wilma e Lelia Abramo (1911-2004) – para interpretar os personagens de Samuel Beckett (1906-1989). Ao longo do tempo, desenvolveu um método de trabalho com os atores do Centro de Pesquisa Teatral (CPT). A experiente Laura Cardoso atesta o valor de Antunes. - Se todo ator tivesse a sorte de passar pelo Antunes seria a glória. Ele é considerado um dos melhores diretores do mundo. E não é tietagem minha – elogia Laura, conduzida por Antunes em sua estreia no teatro, em Plantão 21, de Sidney Kingsley (1906-1995), e, mais recentemente, na segunda montagem de Vereda da salvação, na qual interpretou a sofrida Dolor. Mesmo sublinhando o vínculo com a contemporaneidade, Antunes Filho não nega a importância do TBC no seu processo de formação. - Os resíduos constituem o artista. Não existe ser puro. Vi atores como Jaime Costa (1897-1967) e Procópio Ferreira (1898-1979) nas suas habilidades individuais. Eram extraordinários. Depois, o TBC foi importante porque colocou disciplina no teatro brasileiro, algo que não existia. O ator começou a se comportar de maneira diferente. Na companhia de Franco Zampari (1898-1966), os diretores sabiam fazer o teatro comercial bem feito. Aprendi muita coisa lá. Agradeço a Adolfo Celi (1922-1986), Ziembinski (1908-1978), Ruggero Jacobbi (1920-1981). Falar mal deles seria uma infantilidade. De qualquer modo, há coisas maiores do que aquilo que você diz. Ninguém é o centro do mundo. As pessoas tendem a se dar muita importância – aposta. Às vésperas de completar 80 anos, Antunes segue conduzido pela inquietude suscitada por suas investigações cênicas. - Estou no caminho. É o que importa – resume.
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