A história a seguir mostra a força do teatro como recurso educativo numa classe de crianças de uma importante escola experimental carioca, no início dos anos 80. O relato se refere a uma turma da 1ª série, um grupo homogêneo: todos da mesma idade, aparentemente usufruindo as mesmas condições sociais. Um grupo de crianças, meninos e meninas, que já se conheciam desde as séries iniciais da pré-escola.

Havia uma menina na turma que se destacava pelo seu tamanho. Tinha a mesma idade dos outros mas era muito mais alta, meio gordinha, meio séria.

O trabalho era muito prazeroso com aquela turma, todos sempre animados, prontos para embarcar em qualquer proposta apresentada. Num dia de abril, os alunos chegaram na sala e contaram à professora que estavam trabalhando com um texto sobre índios, estavam fazendo pesquisas, estudando, vendo fotos; um aluno, então, sugeriu que o grupo inventasse uma história de índios para fazerem no Teatro. A professora achou ótima a idéia e logo perguntou quem queria fazer que personagem.

Aí começaram, seguindo a ordem da rodinha, a escolher os personagens que queriam ser. O primeiro disse, rápido: “Eu quero ser o cacique!”. E o seguinte: “E eu, o pajé!”. E assim foram, animados, dizendo suas preferências: “Quero ser um índio caçador!”, “Eu, uma onça!”, “Eu, um índio velho que conta histórias!”, “Eu, um jacaré!”. E tudo ia bem até a menina mais alta escolher: “Eu quero ser um curumim!”.

Um dos meninos, o líder da classe, gritou: “Não pode!”. No que foi seguido pelo resto da turma, em coro: “Não pode! Curumim, não pode!”.

A professora retrucou: “Como assim, não pode? Todo mundo aqui vai ser o que escolher!”. E eles, enfáticos: “Vai ficar esquisito, não vai dar certo. É melhor ela ser outra coisa!”

E a menina, séria, mas decidida, insistia: “Só quero ser curumim”.

A reação do grupo foi proporcional ao desejo – e decisão – da garota de ser, naquele dia, o personagem que escolhera fazer. Uma explicação: como ela era a mais alta, o grupo, inconscientemente, colocava-a sempre no papel de autoridade. Se a história se passava numa escola, ela era a professora... Se fosse uma história de família, lá estava ela de “mãe”... Até ela resolver ser, de repente, um curumim.

Criou-se um embate. Ela queria ser curumim, o grupo não queria deixar! Ao que a professora interferiu: “Vem cá, todo mundo aqui é livre pra escolher o que quer ser. A Ana quer ser curumim, qual o problema?”. Eles respondiam, já mais exaltados, que ia ficar esquisito, como é que a maior de todas ia fazer logo a criança?

De novo, a professora insistiu: “Olhem só uma coisa. Ela é uma criança e quer representar uma criança. Vai ficar esquisito porque?”. E foi se dirigindo aos outros: “O Pedro, por exemplo, não tem quatro patas, não é pintado, não tem a menor cara de onça... e vocês deixaram ele fazer a onça! Então ele também não pode!”.

A briga foi aumentando até o líder da turma – decidido – decretar: “Se ela fizer o curumim, eu saio da história!”

A professora respondeu, calmamente: “Tudo bem, então o pajé sai”. E os outros o foram apoiando: “Eu também saio!”. E ela, tranqüila: “OK, sai também o cacique... a onça... a índia velha... o índio caçador... etc etc etc”

A menina olhava aflita para a professora. Devia estar pensando na confusão que causara e estava, na certa, preocupada: afinal, se todo mundo saísse, com quem ela ia fazer a história? A professora olhou para ela e comentou: “Acabei de me lembrar de uma história linda de uma indiazinha que quer saber como é que as estrelas foram parar no céu. Dá pra fazer essa história só com você... Eu vou narrando e você representa... eu faço a avó da menina...”

Aí uma criança, que tinha se “rebelado”, falou: “Eu posso ser a avó”...

“Ótimo!”

E assim foi: um a um, vendo que iam ficar de fora, foram aos poucos se reintegrando. “Então tá: volta a onça... volta o cacique... voltam os índios caçadores...”

Essa conversa ocupou um tempo inteiro de aula. Não deu pra inventar a história, que ficou para outro dia. Mas essa experiência foi marcante para a professora e, acreditamos, também para aquele grupo de crianças. Ficou claro que a nossa identidade é algo que construímos e, às vezes, duramente precisamos conquistar. Às vezes, é necessário romper com a imagem que o grupo social – tiranamente – faz de nós. Impor-se contra a vontade dos outros, enfrentando reações, veladas ou enfurecidas, parece ser o único caminho para a construção de nossa verdadeira identidade e auto-estima.