Nos últimos tempos, o teatro brasileiro vem sofrendo com a perda de artistas que contribuíram de maneira contundente para o desenvolvimento da cena – entre eles, atrizes emblemáticas como Marília Pêra e Tereza Rachel e o dramaturgo e diretor Naum Alves de Souza.
Exemplo de rigor permanente
Mais do que contabilizar acertos ao longo da carreira, Marília Pêra, que morreu no dia 5 de dezembro de 2015, concentrou tempos ao reunir em suas atuações ensinamentos do teatro antigo, transmitidos pelo pai, Manuel Pêra, com procedimentos do teatro moderno, próprios de sua época.
Em depoimento à Divisão de Pesquisas do Centro Cultural São Paulo incluído em capítulo dedicado à análise da montagem de Domingos Oliveira para Adorável Júlia, de Guy Bolton e Marc-Gilbert Sauvajon, no livro Sobre o Trabalho do Ator, de Mauro Meiches e Silvia Fernandes, Marília relata: “Eu acho que meu primeiro diretor foi meu pai. Ele me dizia, em uma peça, que eu fazia, assim: ‘Se você terminar essa frase com a inflexão, em vez de você terminar com a inflexão lá em cima, se você terminar pra baixo, vão te aplaudir’. Eu dizia: ‘Por quê?’. Ele dizia: ‘Não sei. Tenta’. E aplaudiam”. Atualmente, recursos empregados com o intuito de obter reação imediata do espectador podem ser questionados. Mas a habilidade do ator antigo (anterior à revolução cênica promovida pela versão de Ziembinski, com o grupo Os Comediantes, para Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, e pela fundação das primeiras companhias modernas do país, Teatro Brasileiro de Comédia e Teatro Popular de Arte) em monopolizar a plateia não merece desprezo.
Em todo caso, Marília se consagrou como exemplo de atriz moderna. Adquiriu plena consciência corporal, elemento até hoje confundido com vigor atlético. No mesmo depoimento, a atriz afirma: “Depois que eu passei pelo Klauss Vianna e pela Laura Proença, comecei a repensar o balé clássico (...) O Klauss me deu exercícios para fortalecer os músculos das minhas costas, para que através deles eu tivesse forças pra puxar meu ego para cima. E é uma coisa de corpo: quando você coloca o teu ego no lugar, isso mexe com a tua cabeça também”, observa, referindo-se a Klauss Vianna, que a dirigiu na encenação de O Exercício, de John Lewis.
O acúmulo está presente na trajetória teatral de Marília Pêra, que trilhou caminhos diversos. Realizou espetáculos bem-sucedidos a partir de textos brasileiros, como Fala Baixo senão eu Grito, de Leilah Assumpção (direção de Clóvis Bueno), Apareceu a Margarida, de Roberto Athayde (direção de Aderbal Freire-Filho), A Vida Escrachada de Joana Martini e Baby Stompanato, de Bráulio Pedroso (direção de Antonio Pedro Borges), Síndica, qual é a tua?, de Luiz Carlos Góes (novamente, Antonio Pedro), e Doce Deleite, coletânea de textos de Alcione Araújo, Mauro Rasi, Vicente Pereira e José Márcio Penido (direção de Araújo), material depois retomado como diretora, função que exerceu com especial destaque em O Mistério de Irma Vap, de Charles Ludlam, nonsense com Marco Nanini e Ney Latorraca que permaneceu 11 anos em cartaz. Participou de montagens emblemáticas durante a ditadura militar, como Roda Viva, de Chico Buarque, no Teatro Oficina, espetáculo de José Celso Martinez Corrêa que sofreu a violenta invasão do Comando de Caça aos Comunistas (CCC).
Marília marcou história no campo do musical desde a década de 1960, quando integrou as montagens de Como vencer na Vida sem fazer Força, de Abe Burrows, Jack Wienstock e Willie Gilbert (direção de Harry Hooliver e Sérgio de Oliveira), My Fair Lady, de Frederick Loewe e Alan Jay Lerner (atuando com Bibi Ferreira e Paulo Autran, sob a direção de Victor Berbara), Teu Cabelo não Nega, biografia de Lamartine Babo na qual compôs, pela primeira vez, a figura de Carmen Miranda (direção de Carlos Machado), cantora que revisitaria em outros espetáculos. A atriz manteve fidelidade ao musical nas décadas seguintes, a julgar por Pippin, de Roger O. Hirson (direção de Flávio Rangel), A Estrela Dalva, homenagem a Dalva de Oliveira por meio de texto de Renato Borghi e João Eliseu (direção de Roberto Talma), que deu partida à onda de musicais biográficos, Elas por Ela, tributo às cantoras brasileiras do século XX (direção de Marília e André Valli), Vitor ou Vitória – com libreto do cineasta Blake Edwards, música de Henry Mancini e letras de Leslie Bricuse (direção de Jorge Takla) – e, mais recentemente, Hello, Dolly!, de Michael Stewart, ao lado de Miguel Falabella (também diretor do espetáculo), parceiro frequente nos últimos anos. Cabe citar a interpretação de Marília como Florence Foster Jenkins, “a pior cantora do mundo”, em Gloriosa, de Peter Quilter, encenação a cargo da dupla Charles Möeller/Claudio Botelho. E suas encarnações de mulheres lendárias – Maria Callas em Master Class, de Terence McNally, e Coco Chanel, em Mademoiselle Chanel, de Maria Adelaide Amaral (ambos assinados por Takla).
Filha de atores (Manuel Pêra e Dinorah Marzullo), Marília Pêra subiu ao palco ainda criança, no período em que seus pais trabalhavam na Cia. Artistas Unidos, capitaneada por Henriette Morineau. É uma atriz que aprendeu na prática, mas não se limitou à experiência do dia a dia. Buscou aperfeiçoamento constante com rigor inquebrantável.
Atriz de espetáculos emblemáticos
Apesar de afastada dos palcos há bastante tempo, Tereza Rachel – nome artístico de Teresinha Malka Brandwain Taiba de La Sierra, que morreu no dia 2 de abril de 2016 – foi uma das atrizes mais importantes e de personalidade interpretativa mais vigorosa do teatro brasileiro. Passou por companhias como o Teatro Nacional de Comédia, o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e a Tônia-Celi-Autran (um dos grupos dissidentes do TBC).
A atriz integrou espetáculos emblemáticos. Vale mencionar Liberdade, Liberdade, coletânea de textos reunida por Flávio Rangel (diretor da encenação) e Millôr Fernandes sobre a opressão sofrida pelo ser humano ao longo dos séculos – uma produção do Grupo Opinião que se tornou marco da resistência contra a ditadura. “Mais do que a sua já bem conhecida força dramática, que ela põe, com particular categoria, a serviço dos textos de Eluard, de Brecht e de Buchner, impressionaram-nos, desta vez, a elegância e a leveza da sua presença, que se manifestam, por exemplo, na cena de Beaumarchais e que nos parecem representar um novo progresso na carreira dessa excelente atriz”, escreveu o crítico Yan Michalski, no Jornal do Brasil. Outro trabalho destacado foi em Édipo Rei, tragédia de Sófocles, na qual surgiu como Jocasta ao substituir rapidamente Cleyde Yáconis, obrigada a se submeter a uma cirurgia de emergência. Nessa encenação, Tereza Rachel deu continuidade ao elo com Rangel e o ator Paulo Autran.
Travou mais uma parceria constante com o ator e diretor Sergio Britto. Contracenou com ele em Tango, de Slawomir Mrozek, sob a condução de Amir Haddad, e foi dirigida por Britto nas montagens de Os Órfãos de Jânio, produção do Teatro dos 4 a partir de texto de Millôr Fernandes diretamente inspirado em Os Filhos de Kennedy, de Robert Patrick, e em A Senhorita de Tacna, obra de Mario Vargas Llosa. Tereza defendeu o recorte adotado por Millôr em entrevista concedida a Flavio Marinho em matéria publicada no jornal O Globo. “Você diz que Millôr só coloca em cena personagens fracassadas. Pode ser. Mas, de resto, os últimos 20 anos vividos pelo país não podem ser chamados política e humanamente de gloriosos. No entanto, no final da peça, através de um cantochão, o autor faz questão de esclarecer que o povo, a não ser por algumas pessoas como as suas personagens, soube resistir, individual ou coletivamente, com humildade e espírito de equilíbrio”. Já A Senhorita de Tacna foi encenada em seu teatro, o Tereza Rachel, que recebeu espetáculos de peso desde a inauguração em 1971 até ser vendido para a Igreja Universal do Reino de Deus, que utilizou o espaço entre 2001 e 2008. Em 2011, o produtor Frederico Reder arrendou o teatro, rebatizando de Net Rio (dividido em duas salas – Tereza Rachel e Paulo Pontes).
Tereza trabalhou ainda com diretores estrangeiros em espetáculos ousados, como os argentinos Victor Garcia, em O Balcão, de Jean Genet, montagem produzida por Ruth Escobar, e Jorge Lavelli, em A Gaivota, de Anton Tchekhov, e o francês Claude Régy em A Mãe, de Stanislaw Witkiewicz. Sobre a atuação de Tereza Rachel, como Arkádina, em A Gaivota, Yan Michalski fez elogio contundente, no JB. “O desempenho mais brilhante é o de Tereza Rachel, que transmite uma visão ao mesmo tempo sinceramente simpática e cruelmente crítica de Arkadina”.
Habilidade para transitar por diferentes propostas
A versatilidade está na própria formação de Naum Alves de Souza, que morreu no dia 9 de abril de 2016, ligada às artes plásticas e ao teatro. O seu vínculo com estas manifestações influenciou na fundação, em 1976, do Pod Minoga Studio, um centro voltado pesquisa de linguagem, com alunos como Carlos Moreno (que lançou um livro sobre o grupo) e Mira Haar. Fluente nas duas áreas, acumulou experiência como cenógrafo e figurinista em espetáculos como El grande de Coca-Cola (1974), musical a cargo de Luís Sérgio Person, e no marco Macunaíma (1978), leitura de Antunes Filho para a obra de Mário de Andrade.
Com o fim do Pod Minoga, Naum estabeleceu importante parceria com a atriz Marieta Severo, que conheceu seus textos por intermédio da também atriz Analu Prestes. Marieta participou da trilogia de Naum – No Natal, a Gente vem te Buscar, A Aurora da Minha Vida e Um Beijo, um Abraço, um Aperto de Mão –, que a dirigiu ainda na versão de Cenas de outono (1987), de Yukio Mishima. O contato com Pedro Paulo Rangel, que participou de dois espetáculos da trilogia (Aurora e Um Beijo), foi perpetuado em Soppa de letra (2005). E Naum conduziu Fernanda Montenegro em encenações bem distintas, como Dona Doida – Um interlúdio (1987), excelente incursão na obra de Adelia Prado, e na burleta Suburbano coração (1989), de Chico Buarque.
Surpreendentemente, Naum é um encenador que transita com desenvoltura entre o minimalismo e uma certa grandiosidade. Valoriza o chamado teatro de texto e se dedica a longos trabalhos de mesa com os atores, que têm seus trabalhos destacados em monólogos (além de Dona Doida e Soppa de Letra, Mediano, com Marco Antônio Pâmio) e encenações de clássicos, como Longa Jornada de um Dia Noite Adentro, de Eugene O’Neill, com Cleyde Yáconis, Sergio Britto e o mencionado Pâmio. Também caminhou na contramão do exibicionismo ao dirigir o show Francisco, de Chico Buarque. Por outro lado, realizou incursão no universo da ópera, a exemplo de Carmen, de Georges Bizet, e Madame Butterfly, de Giacomo Puccini.
Além disso, Naum é capaz de transitar, ao mesmo tempo, por universos distintos. Basta dizer que conduziu Nathalia Timberg e Rosamaria Murtinho em Sopros de vida, peça de David Hare ambientada na Inglaterra contemporânea e centrada no embate feroz entre duas mulheres que foram casadas com o mesmo homem e abandonadas por ele e, na mesma época, Amadeus, texto de Peter Shaffer sobre o conflito entre os compositores Wolfgang Amadeus Mozart e Antonio Salieri na Áustria do século XVIII.
Como se vê, a carreira de Naum rende assunto. Não por acaso, o crítico de teatro e ator Alberto Guzik escreveu uma biografia, intitulada Naum Alves de Souza, Imagem, Cena, Palavra, pela Coleção Aplauso (Imprensa Oficial). As obras completas do dramaturgo foram reunidas e publicadas em Portugal e no Brasil, incluindo os textos inéditos.
Textos adaptados de matéria publicada no Jornal do Brasil e de postagens no blog danielschenker.wordpress.com