Desafios em meio a um panorama efervescente

Pelo menos duas vezes ao ano, durante uma ou duas semanas, uma espécie de grande festival de teatro acontece nas duas unidades da Casa das Artes de Laranjeiras. Na tradicional sede da escola, no bairro a qual leva o nome, e no Instituto CAL, na Glória, base do curso de Bacharelado em Teatro, o clima é de trabalho duro nas diversas vertentes que compõem a produção de espetáculos. Contrarregras ajustando fios e instalações, retoques de marcenaria, testes de luz, diretores ajustando marcas de cena e os atores-alunos passando o texto nas salas ou mesmo nas escadas, sacadas e jardins. Qualquer lugar pode se tornar ideal na busca de uma apresentação honesta para o público, que sempre se faz presente, empolgado para prestigiar os primeiros passos dos futuros profissionais das artes cênicas.

As montagens, que funcionam como avaliação técnico-pedagógica dos cursos, apresentam um formato similar ao de espetáculos profissionais e possuem como diferencial a liberdade de curadoria. Não existe obrigação com números e bilheteria. Logo, se tornam uma importante vitrine dramatúrgica que abrange grandes clássicos em formatos inovadores e autores e obras por vezes renegados pelo circuito teatral comercial.
Esse grande laboratório de ideias é regido por profissionais como Adriana Maia, Adriano Garib, Antônio Gilberto, Antonio De Bonis, Celina Bebbiano, Celina Sodré, David Herman, Diogo Liberano, Isaac Bernat, Luiz Furlanetto, Marcelo Morato, Marcus Alvisi, Ole Erdmann, Paulo Afonso de Lima, Renato Icarahy e Ticiana Studart, entre outros. Profissionais que contam com uma vasta experiência nos palcos aliada a projetos de pesquisa de formatos e novos conceitos cênicos. Cabe ressaltar também as montagens do núcleo de teatro e TV para adolescentes e crianças, sob o comando de Alice Reis e com espetáculos que contam com direção da própria Alice e de Andrea Bacellar, Clara Nielsen e Laura Nielsen.

Estão envolvidos no processo das montagens profissionais de iluminação, sonoplastia, cenografia, maquiagem, figurino, assistência de direção e até mesmo funções indiretas, como transportadoras, aluguel de objetos e gráficas que são contratados para prestação de serviço afetos ao desenvolvimento dos projetos.

Maria Augusta Montera, aluna já formada no bacharelado em teatro, conta que seu trabalho na assistência de direção do espetáculo O Último Besteirol, da turma BT11, sob a direção de Marcus Alvisi, despertou nela o desejo por trabalhar com direção e a fez ter uma visão do todo que compõe a construção de um espetáculo. Diz também que conseguiu ver detalhes que passam despercebidos pelo ator em cena, tais como dicção e movimentação, por exemplo.

Para Adriana Maia, professora e diretora, trabalhar com alunos de níveis diferentes se assemelha à realidade encontrada em montagens profissionais, onde é inevitável se deparar com energias variadas, pessoas com vivências e preparos distintos. “Há alunos que entram mais preparados. Alguns são mais estudiosos, outros, mais intuitivos. A diferença não é um problema, mas uma característica e sempre vai existir em determinado coletivo”.

A escolha de texto é realizada junto à coordenação do curso, sob a responsabilidade de Hermes Frederico. O texto é escolhido por características da turma. Adriana conta que já enfrentou dificuldades, como trabalhar em uma turma com 15 mulheres e quatro homens, uma oferta dramaturgicamente difícil, em que a solução veio por meio da troca de gênero. Percebeu que textos cômicos facilitariam a distribuição e optou por montar esquetes do dramaturgo alemão Karl Valentin.
    
Em Nossa Cidade, adaptação da peça norte americana Our Town, de Thornton Wilder, e primeira montagem da turma BT19, Adriana conta que percebeu que a maioria dos alunos da turma era composta por pessoas de fora do Rio de Janeiro, interior de Minas Gerais, de São Paulo, com apenas dois ou três cariocas. “O texto original se passa no interior dos Estados Unidos. Trouxemos para o interior do Brasil, de Minas Gerais, na cidade de Barão de Monte Alto”. Segundo ela, os alunos entraram de cabeça, pois sabiam do que estavam falando, trabalharam a pulsação de uma cidade do interior. Em O Tiro que Mudou a História, trabalho da diretora com a turma BT16, a opção se deu pela presença de um coletivo muito forte. Por isso escolheu um texto que exigia uma sintonia forte de grupo.

A diretora confessa que não possui uma enorme preocupação com estética e que as diretrizes nesse aspecto vão até determinado ponto. “Com exceção da montagem final, no período de formatura, o essencial é o jogo cênico: como o ator está em cena, se desenvolvendo, ganhando de experiência”. Diz ainda que evita se preocupar com a produção após determinado ponto. “É preciso trabalhar os atores, o jogo, o coletivo, a escuta. Agora, se o vestido estará bonito e a maquiagem direita... Forneço indicações, mas vou até certo ponto”. A diretora ressalta que a produção do espetáculo não pode atrapalhar o trabalho do ator, apesar de ser bastante comum os alunos também descobrirem aptidão por elementos da parte técnica, como maquiagem, figurino, etc.

No ano de 2016 é imensa a gama de autores trabalhados, incluindo textos de Bertolt Brecht, Artur Azevedo, Matei Visniec, Jorge Andrade, Aderbal Freire-Filho e Carlos Eduardo Novaes. Entre as montagens também aparecem criações próprias como Buraco da Glória, parceria do diretor Marcelo Morato com a turma BT17.

Morato e a turma optaram por trabalhar com um tema considerado tabu: a sexualidade e suas ditas anomalias e perversões. A montagem – que ganhou uma apresentação extra no Centro Cultural Laurinda Santos Lobo, em Santa Teresa – reúne fragmentos que incluem relatos médicos, textos filosóficos, obras ficcionais e não ficcionais, entrevistas e manifestos. O processo de criação acabou ampliando a abordagem inicial e adentrou nas questões da própria formação da identidade individual. Para o diretor, o método colaborativo é mais exigente do que um processo normal de ensaios, pois exige do ator a participação em todas as etapas de criação, que incluem pesquisa, adaptação de textos, concepção da cena, interpretação, direção de si mesmo e autocrítica. “Acredito que o processo tenha sido enriquecedor para quem se aventurou nessa pesquisa; e que tenha trazido muitas questões para a vida e o trabalho desses jovens. Tenho certeza de que o grito (ou o sussurro) que esses autores e obras nos legaram ecoou muitas vezes em nossos ouvidos”, conclui.

Diretor da montagem de formatura da turma BT13, Sangue no Pescoço do Gato, de Rainer Werner Fassbinder, David Herman conta que ele mesmo prefere escolher o texto a ser trabalhado, visto que nos seus 30 anos de experiência com espetáculos de turmas escolares, já teve momentos em que o grupo ficou dividido entre as opções de trabalho e muitos não se conformaram com a escolha até o final do processo. Para Herman, o número de papéis femininos e a “cara” da turma são elementos essenciais na decisão final de escolha da obra. Segundo o diretor, neste texto de Fassbinder existem papéis masculinos e femininos fortes e todos os personagens possuem o mesmo grau de destaque no desenrolar do enredo, podendo ser plenamente trabalhados ao se dividir a turma em dois elencos.