As melhores tortas de Londres
Os autoritários homens da lei, a feiticeira louca maltrapilha, o marinheiro romântico que se apaixona pela donzela trancafiada e os controversos anti-heróis de traços soturnos estão presentes em um cenário desenhado pela Londres nevoenta de 1846, com suas vielas estreitas, luzes e condições sanitárias precárias e sua efervescente cena urbana. Trata-se de Sweeney Todd – O Barbeiro Demoníaco de Fleet Street, peça escrita a diversas mãos e cujo personagem-título é oriundo das chamadas Penny Dreadfuls, novelas vendidas em capítulos semanais nas ruas da Londres vitoriana por um Penny, a moeda à época.
Consolidada na versão de Stephen Sondheim, por sua vez baseada no libreto de Hugh Wheeler e mundialmente conhecida após a adaptação cinematográfica de Tim Burton em 2007, o musical conta a história de um barbeiro traído e condenado pelas autoridades da cidade - centralizadas na figura do Juiz Turpin - que retorna à cidade após anos e, sedento de vingança pela desgraça que acometeu sua família, assassina friamente os habitantes locais em sua barbearia. Posteriormente, seus cadáveres são transformados nos recheios das tortas de carne da doce e excêntrica proprietária do restaurante vizinho, Mrs Lovett. As piores tortas de Londres, após o novo ingrediente, tornam-se o maior sucesso gastronômico da cidade.
A complexidade de execução e seus sedutores desafios levaram o texto a ser escolhido pelo Projeto do Núcleo de Teatro Musical da CAL como montagem anual do ano de 2016. Composta por 26 atores, orquestra com 16 (13?) músicos e dezenas de pessoas envolvidas em sua produção, todas as etapas do processo de construção do espetáculo exalam dedicação. A tarefa nada fácil de criação da versão em português ficou a cargo do diretor Menelick de Carvalho e do assistente de direção Vitor Louzada e ganha corpo graças a um elenco coeso de alunos do Mergulho no Musical, bem ensaiados e com uma atenciosa preparação vocal realizada por Priscila Lacerda, sob supervisão geral de Mirna Rubim. Versatilidade é a palavra de ordem no processo. Os elencos se entrelaçam e dividem personagens. Todos brilham, incluindo o coro multiforme que se reconstrói a cada nova cena dando molde ao ambiente em que a narrativa é concretizada. Dentre os novos desafios encontrados, talvez o que mais levou a uma dose extra de adaptação foi a presença de orquestra, compondo pela primeira vez uma montagem do núcleo e regida pelo diretor musical André Poyart. O novo elemento exigiu uma preparação maior do elenco na adequação vocal ao espaço cênico.
O Núcleo
O Núcleo de Teatro Musical da CAL (NTM) tem origem na trajetória da professora, cantora e preparadora vocal Mirna Rubim, doutora em Voice Performance pela Universidade de Michigan, através de seu trabalho nos seus estúdios Voz Plena (até 2009) e atualmente no Estúdio VOCE no qual é Diretora-Geral. Menelick de Carvalho, diretor e professor teatral, mestre em direção teatral pela UNIRIO, foi outra parte elementar na formatação e no espírito do projeto, ao conhecer Mirna em seus trabalhos com direção de óperas. A ópera também conta com o engajamento de Gustavo Ariani, diretor da Casa das Artes de Laranjeiras (CAL), que integrou o curso à oferta didática da instituição, em 2009.
O mecanismo do curso ganha novas engrenagens a partir de 2010 e passa a contar com a turma avançada, além da turma livre já existente. Os alunos que concluem o curso livre têm a opção de se submeter ao processo seletivo para adentrar na turma avançada, cuja demanda é, em média, três vezes maior que a oferta de vagas. A prova para admissão é composta por elementos de teatro, canto (solo e grupo) e dança. Cabe ressaltar que o desenvolvimento da parte de dança do Núcleo é coordenado pela professora Soraya Bastos.
Segundo Menelick de Carvalho, os cursos são voltados para construção do repertório dos alunos, focado na parte prática, nas particularidades de cada um e da turma como um todo, sempre com uma apresentação musical ao final constituída de números adequados ao nível de experiência de cada aluno. Ainda, segundo ele, o curso exige que o aluno esteja sempre estudando, preparando tarefas em casa para serem apresentadas, discutidas e trabalhadas. Destaca ainda que criação e disponibilidade são fatores essenciais a quem leva a sério a trajetória no Núcleo de Musicais, por sorte, a esmagadora maioria.
Além dos dois níveis de turmas já citados, são realizadas as montagens anuais, com status de superprodução, como Sweeney, que, segundo Menelick, são o grande cartão-postal do Mergulho. Esta é a sétima montagem anual do projeto. As anteriores foram as autorais Trabalhos de Amor Perdidos, Rebeldia e Tudo sobre Ela escritas em parceria com Guilherme Heus (letras de Menelick e composições de Guilherme) e as consagradas A Chorus Line, RENT e A Festa Selvagem. Podem se submeter às audições para os espetáculos todos os alunos que participaram das turmas do avançado. Por isso é comum que vários regressem para trabalhar novamente no projeto, o que favorece a afirmação do Mergulho como um núcleo referência de ensino e desenvolvimento na área. As apresentações são gratuitas. No final de cada apresentação, a plateia pode contribuir opcionalmente com qualquer valor, repassados para cobrir os custos de produção que são divididos de forma colaborativa entre os alunos. Durante as temporadas não são novidade as sessões esgotadas, listas de espera e repercussão positiva junto ao público e à mídia.
Família Musical
O Grupo é composto por atores que também são cantores populares ou líricos, atores que descobrem o canto, cantores que descobrem a fala cênica e até mesmo cantores-atores que possuem outras profissões, como é o caso de Eduardo Barbuto, que interpreta Badel Bamfort em um dos elencos. Além do teatro, o mineiro concilia seu tempo como servidor da Justiça Federal. Ele conta que seu primeiro contato com o mundo da música foi na infância. “Minha mãe é formada em piano e, desse pequeno, tive a oportunidade de cantar com ela em eventos. Fiz teatro pela primeira vez e sempre precisavam de alguém que cantava. Depois de adulto quis fazer teatro musical para juntar as duas coisas”. No próximo período, Eduardo será monitor de uma nova turma.
As redes sociais como Facebook e Instagram funcionam como plataforma essencial e gatilho de divulgação das montagens. Os vídeos de ensaios, provas de figurinos, maquiagem e descrição dos personagens recebem muitas visualizações e compartilhamentos e o público pode acompanhar as novidades nas páginas oficiais dos espetáculos. As redes também servem para manter o grande grupo de amigos que se formou dentro do núcleo: alunos e ex-alunos se conhecem, se auxiliam e organizam eventos, como as concorridas festas de lançamento dos espetáculos.
Para Menelick, os professores são rigorosos com disciplina, qualidade e comportamento. Estrelismos são reprimidos dentro do curso em favor da coletividade. “Quem reveza toma conta de quem está fazendo. São três Lovett (personagem de Sweeney Todd). Duas atrizes participam do coro quando não estão interpretando a personagem e ficam responsáveis pelo figurino, maquiagem e objetos da Lovett que está em cena. A concorrência existe, mas é saudável. O objetivo é que todo mundo esteja bem” exemplifica o Diretor.
Ao ser questionada sobre qual fator se distingue na atmosfera do curso, Mirna Rubim faz questão de destacar o ambiente salutar em que “todo mundo fica amigo para o resto da vida. O maior orgulho que tenho dessa comunidade aqui é a saúde emocional. A gente não alimenta nenhum egocentrismo”. Mirna destaca ainda a grande evolução dos alunos desde a etapa inicial do curso até os que integram a montagem anual.
Mercado e Futuro
Segundo os idealizadores do Núcleo, o mercado de musicais está aquecido, graças ao fomento dado ao setor. Para Mirna Rubin há um encontro de forças entre investimento financeiro, profissionais que já vêm sendo bem preparados para a função e pessoas com vontade de fazer. “O brasileiro ama cantar”. Para Menelick, sobretudo no eixo Rio-São Paulo e dentre as grandes montagens, é difícil encontrar uma em que não exista um aluno ou ex-aluno do Mergulho no Musical presente no elenco. Dentre os que passaram pelo curso está Tomas Quaresma, aluno da primeira turma do mergulho no musical na CAL e agora estudante em conclusão do bacharelado em Teatro. Tomas foi aprovado em sua primeira audição para o musical Gypsy, enquanto estava no Mergulho no Musical, e afirma que o trabalho desenvolvido no curso foi essencial para o amadurecimento de sua atuação. Aliando a sua formação musical já existente aos treinamentos teatrais e de dança que participou enquanto aluno da Escola do Teatro Bolshoi no Brasil, já integrou os elencos dos espetáculos Um Violinista no Telhado (2011), Cabaret (2012), Rapsódia (2013) e Shrek (2014), todas em circuito comercial. O último trabalho do ator foi no espetáculo Kiss Me Kate – O Beijo da Megera, dirigido por Charles Möeller e Claudio Botelho, vencedor de três prêmios Cesgranrio de Teatro em 2016. Para Tomas, o melhor do Mergulho é “se jogar, aprender fazendo, descobrir novidades e o que precisa ser mais trabalhado”. Ele conta que, graças a todo o carinho e evolução que conquistou no Mergulho, optou por fazer a graduação em artes cênicas na mesma instituição.